ENTREVISTA EXCLUSIVA A JOSÉ CASIMIRO MORGADO

Serviços de Informações da União Europeia

Com: José Casimiro Morgado (JCM)
Por: António Brás Monteiro (ABM)

ABM: Com antecedentes noutras áreas, quais as principais diferenças que encontrou na forma de encarar a intelligence nesse percurso que passou pelo SIS, depois pelo Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e agora pelo EU INTCEN?

JCM: Durante a minha carreira na intelligence, a nível nacional tive o privilégio de trabalhar nas diferentes entidades que compõem o Sistema de Informações da República, no Serviço de Informações de Segurança, como Director Regional no Porto, no Gabinete do Secretário Geral do SIRP como Chefe do Gabinete e no Serviço de Informações Estratégicas de Defesa como Diretor durante praticamente nove anos. Apesar de progressivamente ao longo dos anos ter podido constatar que as informações ganharam mais relevância no apoio ao processo de decisão política ainda, em muitos aspectos, estamos longe do que se passa por exemplo ao nível dos Estados Membros da União Europeia. Como sabe, invoca-se sempre o nosso passado traumático para não dar a relevância à intelligence que ela merece como instrumento fundamental dos Estados de Direito Democráticos. Outros países, com idênticas experiências, reconheceram já quão relevantes as informações são e dotaram os respetivos Serviços dos meios necessários para enfrentar as ameaças atuais, mais desafiantes e sofisticadas do que nunca.

Na União Europeia o reconhecimento da relevância da intelligence, até pela natureza jurídica da Organização e pelos limites legais impostos pelos Estados Membros, é bem mais recente. Mas devo dizer, que por diversas razões, com papel relevante para as mais recentes crises como a invasão da Ucrânia pela Rússia, nos últimos anos a intelligence ganhou uma importância nunca vista no apoio ao processo de tomada de decisão da União Europeia. As Instituições Europeias apoiam-se cada vez mais na intelligence e os Estados Membros têm assumido progressivamente e de forma inequívoca o seu papel de principais contribuintes de intell e de expertise para que o EU INTCEN e o seu contraparte militar EUMS INT essencialmente no quadro SIAC (Single Intellegence Analysis Capacity) estejam em condições de fornecer inteligência estratégica a todos os relevantes decisores da União Europeia.

ABM: Face à fluidez das novas ameaças nos vários planos, no âmbito da defesa estratégica dos Estados e desde as contrainformações a questões mais táticas como a criminalidade ou o terrorismo na versão “lobo solitário”, quais os reais benefícios do EU INTCEN, na ausência de capacidades operacionais e de recolha própria?

JCM: Com efeito, o EU INTCEN não tem capacidades operacionais e de recolha próprias, por razões legais, essencialmente por força do artigo 4 n2 do Tratado da União Europeia. Por essas mesmas razões apenas produz inteligência estratégica e não táctico-operacional. Apesar de tudo, o EU INTCEN tem uma Divisão de Fontes Abertas muito relevante e que tem por função essencial apoiar a Divisão de Análise. Para além disso, o SatCen (European Union Satellite Centre) fornece imagens de satélite que são fundamentais e muitas vezes mesmo determinantes para a produção de intelligence na União Europeia.

Portanto, o EU INTCEN (e genericamente o SIAC), para além das capacidades que mencionei, depende, no que diz respeito à intell, quase exclusivamente das contribuições dos Serviços dos Estados Membros da União Europeia. Digo quase exclusivamente, pois começa a ser mais frequente a partilha, não ainda muito relevante, de intell por outos Estados parceiros da União Europeia em especial no que toca a crises cuja resposta exige muitas vezes posições comuns ou pelo menos concertadas.

Por essa razão o EU INTCEN, e igualmente o seu contraparte militar, é uma espécie de um centro de Fusão que utiliza os diferentes contributos de intelligence (essencialmente dos Estados Membros) para, conjuntamente com a sua capacidade de Fontes Abertas e das imagens, quando necessárias, do SatCen, produzir informações, que representam a base comum de entendimento da comunidade de intell em termos de avaliação de ameaça e de conhecimento (awareness), que são disponibilizadas a todos os relevantes decisores da União Europeia, das diferentes Instituições, Serviços e Agências. Simultaneamente, tudo o que é produzido pelo EU INTCEN é enviado aos Estados Membros.

ABM: Existe o risco de uma análise EU INTCEN deficiente por falta de dados recortados?

JCM: O EU INTCEN apenas recebe intelligence dos Serviços dos Estados Membros, não recebe relatórios operacionais. E apesar da análise que o INTCEN desenvolve durante o processo de fusão dos contributos recebidos ser essencialmente feita por peritos provenientes dos Serviços dos Estados Membros, temos de ter presente que essa actividade de análise é feita com base em relatórios finais e não com base nos diferentes componentes (fontes) que estão na base desses relatórios enviados pelos Estados Membros.

No entanto, há dois aspectos que eu gostaria de realçar. O primeiro é que a relação entre os Serviços dos Estados Membros e o EU INTCEN é baseada na voluntariedade dos contributos (solicitados ou não solicitados) e na confiança na intell partilhada, no sentido de que é objectiva e não afectada por específicos interesses nacionais.

O segundo aspecto é o de que há uma interacção permanente entre o EU INTCEN e os Serviços dos Estados Membros, seja ao nível das Direcções dos Serviços, ao nível dos representantes dos Serviços em Bruxelas e mesmo ao nível dos Peritos Nacionais Destacados.

Certamente que a qualidade da intelligence produzida pelo EU INTCEN depende da qualidade e quantidade dos contributos recebidos dos Estados Membros, mas devo dizer, e com conhecimento de causa, que quer quantitativamente quer qualitativamente, o nível dos contributos nunca foi tão elevado. O mesmo se passa no que diz respeito a peritos nacionais a trabalhar no EU INTCEN, seja como peritos nacionais destacados, seja como agentes temporários. Penso que, mais do que nunca, começa a existir a percepção por parte dos Serviços dos Estados Membros de que a União Europeia deve ser tratada como um « cliente » relevante dos Serviços dos Estados Membros em temas relevantes para o processo de decisão europeu que, inevitavelmente, tem impacto ao nível nacional.

ABM: Existe o risco de uma burocratização do processo de cooperação e partilha de intelligence entre Estados, com consequências negativas no plano de uma resposta atempada a ameaças por um determinado Estado-Membro?

JCM: Essa é uma questão muito interessante sobretudo no momento em que está em desenvolvimento o processo de reforço do SIAC a concluir até 2025, compromisso assumido no âmbito da Bússola Estratégica para a Segurança e Defesa, aprovada em 21 de Março de 2022 pelo Conselho da União Europeia. Neste momento, por força de uma decisão do Conselho de 2011 o EU INTCEN está integrado no Serviço Europeu para a Acção Externa mas sob a autoridade directa do Alto Representante/Vice-Presidente da Comissão Europeia. Penso que este enquadramento institucional é actualmente o mais adequado, tendo em conta as competências do Alto Representante e do Serviço Europeu para a Acção Externa, sobretudo no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa e da Política Externa e de Segurança Comum.

Obviamente que os Estados Membros podem sempre alterar este quadro institucional, tendo em conta que são eles que disponibilizam a sua intelligence em benefício da UE e tendo em conta a limitação do Tratado da UE.

No entanto, apesar da sua posição institucional o EU INTCEN (ou melhor o SIAC) fornece intelligence a todos os relevantes decisores da União Europeia, seja o Conselho, seja a Comissão, seja o SEAE e, claro, o Alto Representante.

Penso que actualmente, até por força de crises recentes que alteraram o paradigma estratégico e securitário em que vivemos, quer da parte da UE quer da parte dos Estados Membros há a clara noção de que o EU INTCEN (e genericamente o SIAC) é solicitado de uma forma semelhante ao que se passa a nível nacional em termos de capacidade de resposta atempada e mesmo em termos de antevisão e capacidade prospectiva. A ideia subjacente ao processo de reforço do SIAC é criar as condições para que o papel das entidades que produzem intell na UE seja cada vez mais semelhante aos dos Serviços dos Estados Membros, não ao nível das competências mas ao nível dos meios e das estruturas que permitam agilizar o relacionamento intrainstitucional e com os Serviços dos Estados Membros. Esse é o desafio, para benefício da UE e dos Estados Membros.

ABM: Estando as capacidades operacionais de coleta de intelligence fora do âmbito de competências do EU INTCEN, qual a pertinência dos seus relatórios e análises para os Serviços de Informações dos Estados-Membro da UE?

JCM: Sem dúvida que o EU INTCEN (e considerando a contraparte militar, o SIAC) tem um papel fundamental na produção de intell, baseada essencialmente nos contributos e expertise dos Serviços dos Estados Membros, para apoio ao processo de decisão política da UE.

No entanto, em minha opinião, baseada na interação que tive não apenas com os Serviços, mas com alguns decisores políticos dos Estados Membros, não podemos esquecer, e eu até gostaria de sublinhar, a relevância do EU INTCEN como espécie de centro de Fusão – terminologia aliás usada mesmo pelos Estados Membros mesmo ao nível político, como por exemplo aquando da criação no INTCEN da Célula de Fusão para as Ameaças Híbridas (Hybrid Fusion Cell).

O EU INTCEN recebe intelligence dos Serviços dos 27 Estados Membros, que por razões diversas, desde históricas, culturais e até de localização geográfica, elencam as suas prioridades e desenvolvem a respectiva expertise de acordo com específicas necessidades. Essa circunstância permite ao EU INTCEN produzir relatórios de informações estratégicas que, como disse, representam uma base comum de entendimento relativamente à avaliação de ameaças e desafios, tendo em conta o facto de a UE ser cada vez mais um relevante actor global. Esses relatórios visam suportar o processo de decisão da UE mas também são disponibilizados a toda a Comunidade de Inteligência. Em minha opinião isto é muito relevante não apenas para as discussões/decisões dos Estados Membros ao nível da UE como por exemplo ao nível do Comité para a Política de Segurança e Defesa ou mesmo Conselho da UE, como também a nível nacional facilitando o trabalho dos respectivos Serviços na produção de informações em matérias que normalmente não estão no topo das suas prioridades ou não fazem parte dos seus interesses específicos. No fundo, trata-se também de uma forma de cooperação multilateral tendo como centro o EU INTCEN, que diga-se, não colide nem substitui a cooperação bilateral nem outras formas de cooperação multilateral criadas pelos serviços dos Estados Membros.

ABM: Como responde a críticas de que o EU INTCEN se assemelha a um Think Thank civil em termos de capacidades, constrangido pela falta de liberdade de análise própria, limitando-se assim a transmitir informação, desinformação ou contrainformação entre Estados, mais confiantes numa partilha de informações bilateral de forma a reduzir riscos de acesso indevido a matéria classificada própria?

JCM: Vamos por partes. O trabalho do EU INTCEN é essencialmente baseado nas contribuições de intelligence dos Estados Membros, pelo que a actividade desenvolvida, também quase exclusivamente por analistas provenientes dos Serviços dos Estados Membros, é uma activade distinta da actividade académica, quer pela metodologia quer pela base sobre a qual é exercida. Por outro lado, posso dizer que hoje a afirmação de que os Estados Membros só partilham o que não é relevante ou partilham apenas informações enviesadas a pensar apenas nos interesses nacionais no sentido de influenciar/afectar os outros Estados numa organização internacional, está bem longe da realidade actual.

Em primeiro lugar, existe a percepção, como disse, de que a UE é um «cliente» relevante, e por isso contributos objectivos são os únicos considerados relevantes para o processo de produção do INTCEN. Por outro lado, também como já referi, o EU INTCEN trabalha numa base comum de entendimento o que significa que, quando necessário e devo dizer excepcionalmente, através de processos internos estabelecidos, há que clarificar potenciais conflitos de análise entre os diferentes contributos.

Em segundo lugar, a partilha de intelligence com a UE e mais especificamente com o EU INTCEN diz respeito apenas a informação estratégica relevante para o processo de decisão da UE. Não faz sentido solicitar aos Estados Membros a partilha de intell que tem de ver apenas com interesses específicos nacionais fora do quadro das competências da EU.

ABM: Qual a evolução que prevê natural para o EU INTCEN?

JCM: Como disse, neste momento está em curso o processo de reforço do SIAC decidido pelos Estados Membros no âmbito da Bússola Estratégica para a Segurança e a Defesa, que deverá ser concluído em 2025.

Do ponto de vista do enquadramento institucional não haverá de momento alterações, ou seja, o EU INTCEN como parte do Serviço Europeu para a Acção Externa e sob a Autoridade directa do Alto representante/Vice-Presidente da Comissão Europeia. Em todo o caso, tudo depende dos Estados Membros e da percepção da relevância do EU INTCEN por parte dos novos titulares das Instituições Europeias.

Espero, no entanto, que este processo de reforço do SIAC permita ao EU INTCEN e ao seu contraparte militar EUMS INT estabelecer a estrutura interna, com o respectivo reforço de meios, que permita desempenhar de forma cada vez mais eficiente a sua missão, sobretudo tendo em conta os desafios actuais e futuros que a UE e os Estados Membros enfrentam e irão enfrentar num futuro próximo.

Por diversas vezes, durante estes cinco anos em funções fui confrontado, por parte de relevantes decisores da UE com a seguinte afirmação: a UE é um actor global que necessita de intelligence para melhor tomar as suas decisões. Se os Estados Membros não estão disponíveis para partilhar a sua intell é obrigação da UE criar os mecanismos necessários para suprir essa necessidade.

Ou seja, é um facto que a ideia da criação de uma Agência Europeia de Intelligence tem sido manifestada ao longo dos anos na UE e até tem feito parte de diversos discursos sobre o Estado da União. Eu tenho, no entanto, uma visão conservadora sobre o tema embora reconheça que algo mais tem de ser feito por parte dos Estados Membros como resposta a esta exigência. Considero que o processo de reforço do SIAC é já um passo significativo nesse sentido.

A acrescer, se os Estados Membros querem manter a intelligence como competência nacional, como eu penso que deve ser, até de acordo com o Tratado da UE, devem assumir a responsabilidade de prover a UE com as informações necessárias. Deveremos passar da ideia de contribuições voluntárias para a ideia de dever de contribuir para a UE. Como referi, penso que esta necessária evolução começa a fazer parte, cada vez mais, da consciência colectiva da Comunidade de Informações dos Estados Membros. Também neste domínio, juntos somos mais fortes.

E altamente provável que no futuro surja a discussão acerca do posicionamento institucional do EU INTCEN. Considero que a integração do EU INTCEN no SEAE e sob a autoridade directa do Alto Representante continua a ser a melhor solução, tendo em conta as condições e os meios necessários para o desenvolvimento da missão. No entanto não excluo a ideia da possibilidade de criação de uma de uma Agência no modelo do SatCen, por exemplo. Seria um enquadramento diferente, mas que ao mesmo tempo exigiria mais envolvimento por parte dos Estados Membros.

ABM: Qual a marca que gostaria de deixar enquanto Diretor do EU INTCEN?

JCM: Eu penso sempre mais em termos colectivos do que individuais. Ao longo da minha carreira nas Informações tive sempre o privilégio de trabalhar com equipas excepcionais. No EU INTCEN não foi excepção.

O papel do director do EU INTCEN e da sua equipa é essencialmente um papel de intermediário entre a UE e os Estados Membros, o que nem sempre é fácil. Por um lado, esclarecer os diferentes decisores da UE, de forma regular, dada a rotação das pessoas, acerca do papel das informações produzidas na UE para o processo de tomada de decisão e sobretudo as limitações que o EU INTCEN tem na produção de informações – apenas informações estratégicas e dependentes das contribuições dos Estados Membros.

Do lado dos Estados Membros, convencer os Serviços da relevância dos seus contributos para a missão do INTCEN, da importância de partilharem mais e melhor intell e expertise. No fundo, incentivar os Serviços a considerarem os contributos para o EU INTCEN como parte da sua actividade normal e diária, com vista a permitir ao EU INTCEN corresponder às crescentes solicitações de forma mais atempada ou mesmo prospectivamente.

O meu objectivo foi o de dar o meu contributo para uma maior interação entre o EU INTCEN e os Serviços dos Estados Membros, por um lado e por outro lado, contribuir para uma maior relevância da intell no processo de decisão política nas diversas Instituições europeias. Penso que, modéstia à parte, dei, com a ajuda da minha equipa, o meu contributo nessas duas dimensões, em circunstâncias muito difíceis e ao mesmo tempo desafiantes.

ABM: Muito obrigado.

 

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