INTRODUÇÃO
Os últimos 100 anos da atividade humana trouxeram um desenvolvimento sem precedentes da sua atividade com consequências económicas positivas para os países ocidentais e suas populações em especial, mas tantas vezes com consequências negativas não negligenciáveis para tantos outros não beneficiados com este desenvolvimento. Esta realidade coloca na ordem do dia desafios vários, uns já identificados e alguns inesperados, como a passada crise pandémica da covid, desafios estes a que temos de dar resposta.
Em particular, o imenso desafio colocado pelas consequências das alterações climáticas tem de ter respostas globais e em todas as áreas de atividade humanas, sendo que o setor dos transportes, responsável por cerca de 25% das emissões globais, tem de ser um parceiro relevante nas respostas a dar em termos de sustentabilidade e de descarbonização do nosso Planeta.
Desde logo, teremos de ser claros quanto às opções estratégicas a implementar, sendo certo que as mesmas deverão resultar de uma abordagem integrada ao funcionamento dos modos de transporte, estruturando o sistema de forma a maximizar o retorno para a sociedade. Consequentemente, o planeamento integrado dos transportes, a estruturação do sistema, considerando o caminho de ferro como a sua espinha dorsal e a aposta no transporte público, na inovação e no digital, são fatores decisivos para o sucesso das nossas ambições de sustentabilidade e de descarbonização.
O ATUAL SISTEMA DE TRANSPORTES NÃO DÁ RESPOSTA AOS DESAFIOS DO FUTURO
Abordemos alguns Indicadores e tendências globais, que importa reter, e que, evidenciam a situação que vivemos:
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- A população mundial teve uma evolução crescente em mais de quatorze vezes, considerando a situação de partida no século XVIII, em que eramos cerca de 600 milhões de habitantes, e o seu crescimento esperado, para cerca de oito mil e seiscentos milhões de humanos que habitarão o planeta em 2030;
- A geração baby boomer e o seu modelo de crescimento, gerou um acréscimo do consumo de energia, maioritariamente de combustíveis de origem fóssil, carvão, petróleo e gaz, em cerca de seis vezes mais face aos níveis até então;
- O número de automóveis em circulação, modo de transporte mais poluente, tanto em termos de consumo por unidade transportada, como em volume global, aumentou de cerca de quarenta oito vezes, desde o início do século XX, atingindo na atualidade mais de mil e quinhentos milhões unidades;
- A ferrovia a nível mundial representa somente cerca de 8% dos passageiros transportados e cerca de 15% do volume de mercadorias transportadas, quotas estas totalmente desajustadas às necessidades de descarbonização que importa assegurar;
- Em termos de emissões de CO2 podemos sintetizar as quotas respetivas registadas na atualidade por modo de transporte, como segue:
- Comboio – 3%
- Transporte marítimo – 3%, sendo este modo de transporte fundamental para o atual sistema global, a sua pegada de carbono é elevada em termos relativos;
- Duas e três rodas – 4%
- Autocarros e minibus – 5%
- Marítimo – 11%
- Aviação 11%
- Camiões – 21%
- Automóveis 45%
- O objetivo de neutralidade climática até 2050, conforme estabelecido no Green Deal Europeu, obriga a que as emissões dos transportes diminuam em 90%, o que obriga a um rigoroso esforço nas atuações a promover.
Na sequência deste enunciado, e para perceber e enquadrar o que posteriormente abordamos, relevemos os indicadores de ineficiências mais significativas do sistema de transportes que importa resolver, desde logo:
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- A poluição e emissões relevantes produzidas pelo sistema de transportes, que degradam o ambiente e que deverão ser revertidas;
- A sinistralidade associada ao transporte rodoviário, que introduz custos externos de grande dimensão, que também são inaceitáveis e que urge resolver;
- O elevado custo médio do transporte/passageiro transportado, de acordo com a atual estrutura do sistema, que é necessário reduzir – devemos incrementar o uso do comboio e dos metros e dos meios elétricos em geral e ter a coragem de assumir que teremos de diminuir o uso do TI;
- Temos uma infraestrutura que é utilizada de forma ineficiente, quer por limitações do lado da sua abrangência, quer pelos estrangulamentos de capacidade provocados, em particular, pelo uso de transporte individual com baixa taxa de ocupação;
- A ineficiente oferta global de transporte do sistema, baseada numa oferta com limitações de cobertura e geralmente desintegrada, que penaliza o utilizador e o afasta de soluções públicas;
- Enorme dependência do sector dos transportes da energia produzida por recurso aos combustíveis fósseis, com as inerentes consequências em termos de poluição.
Quais serão as respostas que teremos de dar para que a eficácia seja efetiva e elevada?
UMA ABORDAGEM HOLÍSTICA PARA A POLÍTICA DE TRANSPORTES
Independentemente dos contributos físicos e funcionais que sejam implementados e de que mais adiante falarei, importa não esquecer, mas sim dar relevo à metodologia de abordagem ao planeamento estratégico do sistema de transportes, estando convicto de que a respetiva abordagem tem de ser holística, sob pena de potenciar ineficiências.
Por isso, o Planeamento Integrado de Transportes é um requisito incontornável e uma obrigação, tendo em vista dar resposta às questões da eficiência sistémica, da otimização funcional da rede multimodal, da segurança dos transportes, bem como da previsibilidade e da estabilidade da oferta.
Com este tipo de planeamento estratégico holístico é possível otimizar os Programas de investimento que lhe estarão necessariamente associados, maximizando o respetivo retorno para a comunidade e para os utilizadores, foco obrigatório dos mesmos – o serviço de transportes tem de ser encarado como um serviço.
QUE MODELO PARA O FUTURO SISTEMA DE TRANSPORTES?
Clarificando a visão que defendo para o sistema de transportes do futuro, enuncio os princípios gerais do mesmo.
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- Um sistema em que todos os modos de transporte têm o seu papel, que decorre das características próprias – os modos devem trabalhar em articulação e de forma eficiente, mediante a promoção de políticas específicas do Estado Regulador, maximizando o retorno para a Sociedade da respetiva atividade;
- Um sistema ferroviário de elevada capacidade e qualidade, tanto na vertente passageiros, como na vertente mercadorias, que deve ser a coluna vertebral de todo o sistema de transportes;
- O uso generalizado do transporte público, que deverá dar um significativo salto qualitativo, nomeadamente em termos de cobertura e de capacidade/frequência, oferecendo soluções ambientalmente adequadas;
- A melhoria da oferta dos metros e a implementação de novas soluções ligeiras, potencialmente escaláveis, em zonas do País com procura previsível que as justifique e que se articulem com os sistemas ligeiros e pesados confluentes;
- A utilização do transporte rodoviário individual de forma eficiente, sendo cada vez mais necessário sensibilizar o utilizador ineficiente para soluções alternativas existentes – esta matéria tem muito de cultural e tem de ser gerida com inteligência e sensatez;
- A transferência, na dimensão possível, do transporte de mercadorias de camião para o Caminho de Ferro, com a certeza de que a distribuição fina deverá ser assegurada pela rodovia – a utilização de veículos elétricos nesta vertente rodoviária é, igualmente, um caminho com potencial de sucesso;
- A redução do transporte aéreo de curta distância, que deverá ser assegurado por modos mais eficientes energeticamente para este tipo de segmento;
- A exploração de soluções marítimas para as vertentes passageiros e mercadorias, que utilizem sistemas ambientalmente adequados é, igualmente, um caminho a trilhar dadas as potencialidades e eficiência deste tipo de transporte em muitas situações concretas – em rotas específicas e comercialmente muito interessantes;
- O uso de meios leves, de forma eficiente, segura e disciplinada, integrados e articulados com o sistema global, que poderão ser promotores de uma melhor relação com os espaços urbanos e geradores de uma melhor qualidade de vida;
- A promoção de interfaces multimodais, de dimensão adequada e elevada qualidade funcional, onde se concretize a ligação entre os modos de transporte afluentes e se maximize a eficiência global do sistema.
Analisemos agora o desafio digital, que será enunciado na lógica da visão atrás explicitada e que coloca um acento especial na ferrovia, sendo certo que será elemento com evidente potencial de otimização dos desempenhos modais e sistémico.
A DIGITALIZAÇÃO NECESSÁRIA
A comunicação com o utilizador da rede de transportes está a passar de um contacto algo impessoal para um contacto personalizado e dinâmico, exigindo um especial contributo dos serviços online e do processamento de dados recolhidos.
Atualmente, é cada vez maior o número de serviços disponíveis em plataformas acessíveis, geridas por diversos protagonistas, desde os tradicionais, os gestores das infraestruturas e os operadores de transporte, ou por terceiros em conjunto com os dois primeiros.
Face às exigências da procura e das exigências de sustentabilidade, os prestadores de serviços de transporte têm de se adaptar e buscar novas formas de relacionamento com os seus “clientes”, trabalhando também com entidades terceiras, que os aproxime deles e lhes disponibilizem soluções de fácil utilização e que respondam às suas expectativas.
Por isso, esta nova realidade obriga a novas abordagens por parte dos operadores e agentes do sistema de transportes, que terão de concretizar investimentos em sistemas e equipamentos inovadores, baseados no digital, na gestão de dados, em mecanismos de autoaprendizagem e na utilização de Inteligência Artificial, direcionados a uma oferta inteligente, sistémica com retorno transversal reconhecido.
Dando alguns exemplos genéricos de investimentos a concretizar:
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- Construção de novas infraestruturas ferroviárias, cobrindo de forma mais efetiva o País, devidamente integradas com a Rede Geral, bem como renovação de infraestruturas existentes, nomeadamente em termos de capacidade, que incluirão sensorização generalizada e automatização – infraestruturas inteligentes que otimizem a respetiva gestão e os processos de manutenção envolvidos;
- Renovação de infraestruturas rodoviárias, promovendo a sua digitalização transversal, buscando alcançar uma eficiente e benéfica comunicação veículo/infraestrutura, bem como oferecer funcionalidades adicionais, como o carregamento elétrico das viaturas;
- Renovação de interfaces existentes, adaptando-as a uma realidade digital mais complexa e construção de novas interfaces e centros de coordenação de transportes, que atendam às necessidades de articulação de uma oferta multimodal eficiente;
- Entrada ao serviço de novos equipamentos elétricos de transporte com forte digitalização em termos de sistemas disponíveis – comboios inteligentes que permitirão melhorar a qualidade de oferta e generalizar a sua manutenção numa lógica preditiva;
- Conceção e concretização de novas ofertas de transporte público, nomeadamente ferroviário, que poderá ser ligeiro complementar, que permitam uma melhor cobertura territorial e respondam às necessidades socioeconómicas do País;
- Concretização de soluções digitais de bilhética integrada, envolvendo a globalidade dos operadores de transporte, que atendam às expetativas dos utilizadores do sistema e respondam às necessidades dos prestadores do serviço;
- Concretização sem hesitações de soluções de acessibilidade aos transportes sem constrangimentos físicos, abrindo os sistemas à sua utilização sem barreiras, minimizando os problemas de segurança que as estratégias de fecho acarretam.
OS RISCOS DA DIGITAZAÇÃO. A CIBERSEGURANÇA
Passemos agora a outra matéria que ganhou e continuará a ganhar relevância face ao aumento da digitalização dos nossos sistemas, a cibersegurança.
Como é sabido, a cibersegurança representa um novo e complexo desafio ao qual temos de responder, dada a crescente e transversal adoção da tecnologia digital, tanto nas vertentes operacionais e comerciais, como na muito relevante vertente da safety. Questões introduzidas pelo conceito do open access, tão discutidas entre os ferroviários, têm de ser resolvidas, tal como uma estratégia clara de utilização do digital para este século de mudança e desafios significativos, sendo certo que esta deverá ter como foco a prestação do serviço à comunidade em geral e ao utilizador em particular, não prescindindo do usual rigor e exigência em termos de segurança.
Todas as potenciais e reais fraquezas daí resultantes, terão de ser garantidamente minimizadas pelo aumento da eficácia dos mecanismos de proteção/prevenção.
Para atingir este objetivo macro, considera-se necessário, nomeadamente e de forma não exaustiva:
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- Rejeitar a abordagem laxista “do nunca aconteceu, como tal não vai acontecer”, protegendo os sistemas e equipamentos com a adequada arquitetura (safety by design);
- Proteger a informação de Segurança (dados, sistemas e redes envolvidos) e a sua integridade, bem como as informações específicas operacionais e comerciais, face a agressões externas e internas;
- Promover e desenvolver estratégias baseadas na cooperação e boas práticas entre todas as entidades relevantes, cooperando em rede e realizando testes de resiliência frequentes, prática a que já estamos habituados em Portugal, mas que devemos incrementar tanto quanto possível;
- Apoiar, nesta vertente, a inovação e as empresas nacionais, com a ambição de sermos um nicho de desenvolvimento, de conceção e de fabrico de equipamentos e sistemas.
O FUTURO AGUARDA-NOS E A NOSSA PASSIVIDADE NÃO É ALTERNATIVA!

Lisboa, 27 de Outubro de 2025
Francisco Cardoso dos Reis
Auditos 1088/2014

